24 de novembro de 2006

Hoje eu subi no andar mais alto de um prédio para tomar café e esquecer um pouco. Várias outras janelas de vários outros prédios estavam abertas e eu gostei disso. Quartos com cara de quartos. Salas com jeito de salas. Tudo arrumado, organizado e empoleirados uns sobre os outros. Eu me senti pequena e grande. Pequena porque a gente é só mais um nessa cidade, e isso faz com que a gente se sinta sozinho. Grande porque, por mais que o todo seja uma merda, é bom fazer parte de alguma coisa.
Além de tudo, várias músicas passavam pela minha memória, com a melodia tão nítida que eu quase podia ouvir realmente as vibrações das vozes e dos instrumentos.
Num dia assim, com o sol já quase se pondo e o céu já ganhando um alaranjado de fim de tarde. Não precisei de óculos escuros.
A gente segue seguindo até onde dá pra ir. Depois disso fica difícil. E a vontade que dá é a de seguir o conselho de Raduan Nassar e preparar-se para dar um salto e deixar que o mundo te embale.

Aí pelas Três da Tarde
Raduan Nassar(para José Carlos Abbate)

Nesta sala atulhada de mesas, máquinas e papéis, onde invejáveis escreventes dividiram entre si o bom senso do mundo, aplicando-se em idéias claras apesar do ruído e do mormaço, seguros ao se pronunciarem sobre problemas que afligem o homem moderno (espécie da qual você, milenarmente cansado, talvez se sinta um tanto excluído), largue tudo de repente sob os olhares a sua volta, componha uma cara de louco quieto e perigoso, faça os gestos mais calmos quanto os tais escribas mais severos, dê um largo "ciao" ao trabalho do dia, assim como quem se despede da vida, e surpreenda pouco mais tarde, com sua presença em hora tão insólita, os que estiveram em casa ocupados na limpeza dos armários, que você não sabia antes como era conduzida. Convém não responder aos olhares interrogativos, deixando crescer, por instantes, a intensa expectativa que se instala. Mas não exagere na medida e suba sem demora ao quarto, libertando aí os pés das meias e dos sapatos, tirando a roupa do corpo como se retirasse a importância das coisas, pondo-se enfim em vestes mínimas, quem sabe até em pêlo, mas sem ferir o decoro (o seu decoro, está claro), e aceitando ao mesmo tempo, como boa verdade provisória, toda mudança de comportamento. Feito um banhista incerto, assome em seguida no trampolim do patamar e avance dois passos como se fosse beirar um salto, silenciando de vez, embaixo, o surto abafado dos comentários. Nada de grandes lances. Desça, sem pressa, degrau por degrau, sendo tolerante com o espanto (coitados!) dos pobres familiares, que cobrem a boca com a mão enquanto se comprimem ao pé da escada. Passe por eles calado, circule pela casa toda como se andasse numa praia deserta (mas sempre com a mesma cara de louco ainda não precipitado) e se achegue depois, com cuidado e ternura, junto à rede languidamente envergada entre plantas lá no terraço. Largue-se nela como quem se larga na vida, e vá ao fundo nesse mergulho: cerre as abas da rede sobre os olhos e, com um impulso do pé (já não importa em que apoio), goze a fantasia de se sentir embalado pelo mundo.


Texto extraído do livro "Menina a caminho", Companhia das Letras - São Paulo, 1997. pág.71.

[importante lembrar que esse texto do Raduan Nassar não está licenciado pelo Creative Commons, como todo o resto do blog, só observação]

Um comentário:

thaispimenta disse...

é coisa linda de deus.

e a pi tem dores iguais as da pri, mas a pi gosta de escrever quando dói.

valeria a vã verdade valer vagando vaporosa em valises vermelhas?! (eu comentei uma poesia com essa frase e gostei da bixa, rs.)

um beijo bem grande!