10 de dezembro de 2008

Carta crua

Não me ame. Eu só vou até ali. Depois disso fica confuso. Eu não sei como conduzir, a estrada fica escura e eu paro o carro. Você pode até pensar que é exagero, mas te digo: eu não alcanço. Meu caminho chega ali e pára, olha pra minha cara e pergunta pra onde eu vou. Respondo que eu não sei. Que na verdade eu nunca soube, que sempre meio deixei levar, que ia conforme o vento. Se via que estava errada, colocava o sapato e voltava, sem medo de perder. Aquele medo típico de quem não sabe onde está. Depois disso fui seguindo, arriscando aqui e ali, nada que me trouxesse pra perto, mas também que não me conduzisse pra longe. Andei no limiar das ruas que não tem saída, depois procurei outras que me levassem para cruzamentos certeiros. Esperei. Não havia o que fazer.

Enquanto isso te deixei aqui, não dei satisfação sequer. Achei que não deveria. Fui conduzindo como achava que era. Sem encontrar nem perder caminhos. E o fato é que não me perdi, mas estive muito mais distante de me encontrar. Negando o que achava que devia, me perdi em contradições, tive vontade de voltar, mas não obedeci. Fugi para outros cantos e procurei novas pessoas. Aterrorizei-me. Fiquei no escuro e em silêncio para que eu não desistisse de ser encontrada, embora isso não estivesse nos meus planos, depois deixei de precisar. Pensei em muita coisa, até em me matar, veja só, mas nem esse era o caminho que eu perseguia, nem resolveria meu problema e saciaria minhas questões. Deixei as coisas para mais tarde, e quanto mais tarde ficava, mais essas coisas acabavam me perseguindo. Eu virei refém.

18 de novembro de 2008

Hoje eu não tô pra conversa, não tô pra verdade , não tô nem aí.
Hoje o dia fechou, o trabalho rendeu, e eu nem tô aqui.
Hoje não tem cama que cure, bebida que dure e café que segure.

Hoje o silêncio é pouco, o grito é rouco e a paciência esgotou.
Hoje perdi a poesia, perdi a fantasia e cancelei o carnaval.

Mas só hoje.


É que amanhã a gente bota a roupa, segura no corrimão, repensa a escola de samba , embala a composição, tira a viola do saco e toca a vida na flauta. Ou não.

9 de outubro de 2008

Desencontro

Ela chegou ao pequeno salão e acomodou sua bolsa na cadeira vazia ao lado. Abriu a garrafa d’água por hábito, não por sede. Cruzou as pernas e esperou a meia hora que faltava para o início da palestra checando os números do celular.

Ele entrou de maneira desajeitada e se sentou frente ao público escasso, espalhado pelos assentos. Dispensou o microfone e sentindo-se mais confortável pela ausência de uma grande platéia, tirou a camisa para fora da calça e passou a mão rapidamente pelos cabelos. Respirou pesadamente. Olhou para ela sem saber que a via.

Ele fica mais bonito quando está desarrumado, pensou. É uma bagunça não alinhada. Um descomprometimento com a harmonia das vestimentas. A camisa agora amassada e levemente curta que, vagarosamente, seguindo o movimento dos braços, abria frestas para partes do corpo alvo, não esguio, mas ereto e timidamente desenvolto. Levantou e começou a falar, andando de um lado para o outro. Ela ia descrevendo e revelando seu comportamento, que não conhecia, mas a sua imaginação flutuava. Os dedos alongados demonstravam austeridade. Os óculos de aros finos transpareciam sabedoria e a paciência com a mediocridade era um silêncio ante a ignorância da pretensão. Os gestos mornos, pequenos círculos e demonstrações, não apagavam a luz dos olhos sutilmente claros, de pálpebras baixas. O pescoço alongado sustenta uma face de pêlos claros, barba e cabelo rente à cabeça.

Ele sequer imagina o que a moça escondida na platéia começa a desenhar e o pudor a impede de dizer que deseja esse homem calmo. Se envergonha de estar no meio daquelas pessoas, de perceber que ele é o centro das atenções, já que está num palco modesto. Em silêncio, ela continuava procurando palavras que o revelassem sem desmascará-lo. Ficou enrubescida por essa ação desigual – Ela se misturava meio ao público enquanto ele figurava abaixo da luz. Queria chamá-lo de outro nome, mas esqueceu até seu original. Além disso, a falta de intimidade a impedia de inventar-lhe um apelido ou abreviação silábica.

Que músicas ouviria de olhos fechados e quais motivos o levariam às lágrimas? Não haveria outro meio de conhecê-lo, nem de admirar aquele sorriso lateral, a cabeça baixa e intimidada. O desconforto de um palco sem altura. Sentiu-se pouco atraente, ocultando sua sensualidade dançante, ressaltando o olhar hoje mais entristecido, que era coisa da própria vida. Sua roupa amolecida e floral o enganava e ela se furtou a encarar um olhar incerto, por receio de transparecer sua fraqueza. Os nomes que ele falava passeavam por sua retina, mas nenhum era arquivado em sua memória. Longínqua e distraída.

Ela se levantou antes do fim e sem olhar para trás. Ele acompanhou seu trajeto até a porta que dava para o saguão. Distraiu-se por um segundo de seu discurso e gaguejou. Com a porta já fechada, ele olhou para as mãos e lamentou a ausência dela, retomando as palavras dirigidas a ninguém.

4 de setembro de 2008

Não tenho medo. Tenho silêncios.



[são tempos de frases curtas]

3 de setembro de 2008

As pessoas são mais bonitas quando estão desarrumadas.

29 de julho de 2008

Meu avô

Alguém me segue pela casa durante todo o dia. Falta tema para seguir com uma conversa, por mais que ele demonstre vontade de começar alguma. Decido preparar uma garrafa de café. Em vários lugares do mundo, a bebida pode ser motivo de grandes encontros e papos. Seria meu ponto de partida para rever memórias espalhadas pelo tempo e espaço da mente do meu avô.

Café na mesa, algumas bolachas.
- Sente-se meu avô.
- Cafezinho é sempre bom – diz ele, que passados longos anos de sanidade seguidos por decadente perda de memória, o substantivo avô não lhe causa estranhamento
Hesito para verificar se ele começa o assunto. Silêncio.
- E a Vovó Marina, vô? Sente saudades?
- Hum, Marina foi uma namorada minha, bonita que só!
- E seus filhos?
Silêncio. Ele muda de assunto.
- Sabe, existem as coisas. Vou falar para o meu pai, quando ele morrer, dividir entre mim e os meus irmãos. Aí eu pego essas coisas e dou para minha filha cuidar de mim.

Ele chora. Meu bisavô morreu há muito tempo atrás, antes mesmo de minha mãe nascer, seus irmãos não lhe foram companheiros durante toda a vida. Alguns morreram, outros sumiram por diversas cidades. Moravam em uma cidade chamada Santa Cruz, distrito há muito extinto de Ribeirão Preto.

- Onde estou?
- Em Piraju vô. Na casa de sua filha.
- Quem é minha filha?
Aponto para minha mãe.
- Não, essa é Aninha, minha irmã, que não me deixa ir para canto algum.
- Hum.
- Eu me sinto sozinho sabe? Lembro de uma imensidão de coisas e, de repente, tudo fica escuro, vazio, como se eu caísse em um buraco negro.

Percebi que, na verdade, ele se sente muito sozinho, não reconhece as pessoas e tem espasmos de memória que lhe trazem sentimentos muito distantes.
Certa altura do dia, ele pede dinheiro para ir ao bar. Algumas vezes não se pode dar, atrapalha o efeito dos remédios. Não há muito o que fazer, negar a cerveja diária é o mesmo que tirar sua única lembrança dos dias. Não é justo.

Olho em seus olhos, bem fundo, e não consigo resgatar uma lembrança sequer. Nada. É como se por trás da pupila, de dentro da retina, não existisse mais nada, a não ser um emaranhado de idéias confusas, sem cronologia correta, tudo espalhado dentro de um quarto que necessita de arrumação.

6 de julho de 2008

Comecei pelo fim.

Até agora não decidi para onde vou.


p.s: [Que eu, desde a partida,
Não sei onde vou.
Roteiro da vida,
Quem é que o traçou?]

Camilo Pessanha

12 de junho de 2008

Cinema Paradiso


Partir sempre é como habitar lugar nenhum.

Olhar para trás é como ver fantasmas, e sempre em frente é como não ter saudades, ou apagar lembranças.


A vida às vezes segue sozinha, sem capitão para o timão do navio, só embalo das ondas e ventos dos continentes.


Ser sempre dos lugares é pertencer ao mundo e às suas estradas tortuosas.


Envelhecer é descobrir os destinos para onde nos levam os caminhos.

Sentir cada circuntância é viver.


As pessoas fazem parte das trilhas pelas quais passamos. Conhecê-las é pertencer aos lugares e abandoná-los em breve.


É necessário partir e voltar.


Mesmo que a aparência mude, o ar traz o cheiro de tempos diversos.


Não lembrar é abandonar os detalhes de pessoa em seu tempo presente.

Ser pessoa implica perder-se pelos caminhos mal traçados, encontrar o despreparo da falta de planos e das saudades espalhadas e latentes.
[ps. a foto não está em CC's]

7 de junho de 2008

Não vim para ver a vida
P
A
S
S
A
R

Mas sou
P
A
S
S
A
G
E
I
R
A

Vim para ficar
E ver tudo
M
U
D
A
R

21 de maio de 2008

Dias e noites de Montevidéu

Montevidéu

Uma estrela, uma estrela
nenhuma constelação
nenhum disco voador
nem dor aqui
e quando olho lá embaixo
vejo velhos
vejo carros
vejo coisas
a estrela, as luzes, o céu daqui

É um tanto saudade de lá
no entanto eu não quero partir
lá no canto uma estrela
eu adoro existir!

texto de Paulo Vigu. Poeta e compositor pirajuense. De primeira!


[porque os dias e noites têm tido as cores de Montevidéu, que não conheço, mas imagino como seja]

25 de abril de 2008

Cena

Não mude a cena do filme cujo final você não escreveu. É irresponsável e arrogante. Mas crie e invente novos finais, para personagens alcançáveis e insaciáveis por uma nova história.

18 de fevereiro de 2008

do que eu sei

Não me peçam para endurecer.

a leveza é o que me convém.

21 de janeiro de 2008

Não gosto de nada que tire o brilho dos olhos dos meus amigos. Nada que aconteça a eles passa por mim sem deixar uma réstia de dor.

Não são tempos fáceis. São tempos em que os ventos trazem notícias ruins, as aflições engrandecem.

No mundo do futuro, o mais difícil é saber para onde ir. Não há samba nem cachaça para servir de anestesia.

A cidade de pedra maltrata. A cidade de rio é longe e deixou de proteger.

Meus amigos têm a cara e a alma limpa. Sonham. Criam como se vida a isso se resumisse. E sonham sempre.

A esperança de dias melhores nos espreita, embora às vezes tão a espreita que parece não estar em lugar nenhum.

De longe se vê que os tempos hão de mudar e eles se esforçam para tudo correr bem.

Sem motivos aparentes, a tristeza corre sorrateiramente por seus rostos. Eu quase posso ver.

E eu, só consigo lançar palavras frágeis, construídas em prosa e verso.

20 de janeiro de 2008

João Passarinheiro - terceira parte

Depois desse acontecimento, o pai isolou-se numa busca eterna pela mulher. Mal falava com o filho e deixou de preparar-lhe a marmita de arroz, feijão e bife, que costumava trocar pelo peixe abundante no riacho que corria perto da casa. Desde então, Passarinheiro deu para tomar muito café que ele mesmo torrava e servia ao pai nos fins de tarde, quando chegava de sua incursão diária pela mata verde e cerrada. Fumava cigarro de fumo de corda que trocava no armazém de Seu Joaquim por um punhado de café fresco servido todas as tardes pelo comerciante. Era magro e esguio, andava descalço sempre, por maior que fosse a caminhada.


[Aviso aos navegantes: para entender esse texto, creio que seja preciso ler as outras duas partes, perdidas, embora facilmente encontráveis, em cantos desse blog. Era só e tudo isso]

8 de janeiro de 2008

me dê notícias de você

É minha fuga.
Meu delírio.
Meu silêncio e meu suspiro.

Tudo está lá fora.
.
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Quieto.
.
.
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À espreita de um descuido meu.

Esse descuido que nunca vem.
É um medo que me assiste.
Sem trégua.