19 de junho de 2006

RUAS

Há quem diga que as ruas têm coração de pedra, mas ali, por entre elas, era a minha vida que eu via passar pelos meus olhos. Cada uma em que adentrava me contava minha história, respirando por entre as frestas dos paralelepípedos sufocados pelo asfalto. Não foi pedra que eu vi por ali. Passeando pela cidade que há muito sentia falta. Foi vida.

Eu consegui ver minha infância nas ruas que circundam as praças. Pude me ver menina, fazendo descobertas, deitando no chão e olhando as copas das árvores e as flores que prendiam nos meus cabelos longos. Mesmo escuras, lembrei da luz que o sol trazia e aquecia minhas tardes à beira do rio. Entrei por entre ruas e ouvi o som da voz dos meus amigos inventando brincadeiras. Revivi minhas incertezas enquanto descobria meus amores. Foi nos seus cantos escuros que eu me escondi. Foi por entre elas que meu caminho começou.

Hoje sinto que as deixei pra trás. Assim como quem passa e abandona um pedaço de si nos corredores vazios de luzes amarelas. Deixei para trás o que me serve para construir os caminhos que hoje traço. Em busca de outras ruas me senti sozinha. Procurando um futuro prestes a iniciar-se.

Naquelas ruas eu vi tudo o que sou e entendi. O tempo não me castigou, apesar de ter me roubado as ruas em troca de outras. O tempo me deu o que chamamos de lembranças. E eu me presenteei com todas as minhas conquistas. Com todos os meus sorrisos e lágrimas. Todos os medos, incertezas. Todas as músicas e poesias que aquelas ruas me deram quando procurei por elas.

Não há de ser pedra o que a rua me contou.

5 de junho de 2006

A Louca de Higienópolis – Parte 2 – A pensão da Barão de Tatuí.

Uma boa história nunca acaba. Ao menos para quem fareja fatos novos ainda desconhecidos.
Por um caminho nunca dantes percorrido, o bairro a princípio é Higienópolis. Saindo das ruas que na maioria das vezes tem nomes de estados brasileiros, entro no famoso Bela Vista. Centro de São Paulo. Ando por ruas cheias de prédios soberbos que depois contrastariam com o lugar que procurava.

Esclarecimento à população: Seu Salvador e suas inquilinas não são doidos! Pra dizêr qué, eu, márcia não morava lá, eu um quarto e cosinha sósinha. Até: morei. Muitos anos, lá. Morei 15 anos e 7 meses na pênsão dele desde 1984 até 1998. agosto.

O combustível da curiosidade foi a dúvida de quem descobre um lugar mas questiona sua existência. Com um endereço nas mãos, chego ao pé da rua que começa em outra, Jaguaribe. Desço atenta à numeração. O garbo é deixado para trás. Chego enfim ao endereço riscado no papel. Rua Barão de Tatuí, 493. A primeira reação foi o espanto. Causado pela verdade de um lugar que existia, até então, somente em folhas de papel manchadas de tinta de caneta. Uma pensão marrom, silenciosa. O lugar possui três portas. Uma por onde entram as inquilinas, outra comercial ou algo que lembra uma garagem e a terceira que parece dar acesso à casa dos donos. Na primeira porta de entrada uma placa: Aluga-se vagas para moças. Diminuo a marcha, exatamente à frente do número 493. Do meu lado, uma janela de onde se é possível ouvir uma música lenta, que não identifico. Ambientada por uma meia luz suspensa no teto. As paredes têm cor de tijolo cru.

São Paulo 27 de maio 2006. Aqui sou eu. Márcia da pensão de seu Salvador. Barão de Tatuí 493. Estou morando na rua desde 09 de agosto de 1998. Quando puseram energia atômica pra me matar na Barão de Tatuí 493. Julho Agosto 1998.

Sem saber ao certo o que fazer, entro num bar. Penso em perguntar algo sobre a misteriosa pensão, mas desisto. Todos estão muito ocupados assistindo ao futebol na televisão. Então volto. Passo na frente do lugar novamente. Dessa vez há uma senhora na porta, que acaba de chegar de seu trabalho. Sorri para mim. Ela tem nome de santa e me deixa à vontade. Pergunto a ela se conhece a Márcia, aquela que escreve e prende seus textos no muro da Avenida Higienópolis. A senhora responde como quem tem pena. Conhece e conta que a escritora foi “enxotada” da pensão. Relata que o dono, cujo nome aparece frequentemente nos textos, não perdoa sequer um aluguel atrasado. Conta também que ouviu falar que Márcia usava drogas. A senhora mora ali há quatro anos e meio e não é contemporânea da “louca”. Descubro que no natal do ano passado a poetisa deixa uma carta na caixinha de correio. Amaldiçoa os moradores e promete vingança.
No caminho de volta, me deparo com uma árvore circundada por mais textos de Márcia. Tiro da árvore e vou embora, cheia de possíveis histórias na cabeça. Agora, depois do contato com a pensão, ainda mais pulsantes.