Uma cena qualquer.
Ela entrou pela porta, cansada, foi se livrando das coisas que pendiam sobre seu corpo e, delicadamente, em uma bagunça quase milimetricamente pensada, repousou as bolsas e pacotes pelo chão. A face mirava o assoalho e a visão não possuía qualquer objetivo. Não acendeu a luz. A claridade que vinha da rua parecia sutilmente mais bem vinda e delicada.
Caminhou até a cozinha e pegou uma taça e uma garrafa de vinho. Sentou-se ao sofá e derramou sorrateiramente o liquido púrpura nas encostas do copo de espessura fina e fria. Encostou sobre os lábios e pôs-se a sorver o líquido como quem absorve a própria vida. O silêncio era suficiente, o barulho dos carros e a música orquestrada da cidade que termina o dia, tocavam uma harmonia que ela quase podia bailar. O silêncio da observação.
Insistentemente tomou o jornal do dia nas mãos. Limitou-se a ler seu horóscopo que insistia em demonstrar a previsibilidade da astrologia e a consulta inútil sobre seus próximos passos. Era o pedaço de uma história que ainda ninguém havia escrito.
Deitou-se. Cerrou os olhos e ainda assim era possível sentir a lágrima salgada e quente que contornava as curvas da face. Era o dia seguinte que ela esperava chegar. Esse dia que sempre espreita à nossa porta, mas que em chegando, nada mais é que esse mesmo dia em que se espera o que virá depois, dali às outras vinte e quatro horas.
De bruços na cama, sentiu o cheiro macio do lençol que acabara de chegar da lavanderia e que ela havia disposto sobre o colchão de maneira que não o amassasse. Adormeceu.
O sono tranqüilo foi interrompido por um toque que massageava carinhosamente sua testa, no curto espaço acima do nariz e entre os dois olhos. E, com dois olhos negros também se deparou assim que se dispersou da sonolência. Era ele.
Havia acabado de chegar e cumprir um trajeto que observava cuidadosamente os passos dados por aquela que ele conhecia tão bem. Quase podia imaginar seu rosto e a expressão lânguida que a tomou assim que entrou pela porta de sua casa. Deitou-se ao seu lado na cama, por ora, quente. Olhou-a longamente, até resolver acariciar-lhe a tez adormecida. O silêncio fora quebrado pelo jazz ronronando na vitrola antiga. Era possível ouvir as pequenas imperfeições que a agulha do aparelho causava nas ondulações do velho disco de vinil.
Assim ficaram durante longas horas. Olhando-se como se o mal-fadado passar do tempo não lhes tomasse de assalto. É esse o medo de quem não quer ir embora.
Abraçaram-se com cuidado. As palavras foram adiadas para o próximo encontro, que também assim, deveria ser, sem circunstância propícia ou planejada.
Despediu-se sem nada prometer. E ela assim o queria, sem juras curtas de um amor infindo. A surpresa agradava mais que o compromisso acompanhado de flores vermelhas. Foi-se assim.
Ela, tendo ficado, tomou mais um gole do vinho e dormiu sobre os cheiros confundidos, deixando o saxofone tripudiar sobre a dor que não a havia alcançado.
Um comentário:
Um sussurro literário!
Postar um comentário