16 de setembro de 2006

Uma cena qualquer.

Ela entrou pela porta, cansada, foi se livrando das coisas que pendiam sobre seu corpo e, delicadamente, em uma bagunça quase milimetricamente pensada, repousou as bolsas e pacotes pelo chão. A face mirava o assoalho e a visão não possuía qualquer objetivo. Não acendeu a luz. A claridade que vinha da rua parecia sutilmente mais bem vinda e delicada.


Caminhou até a cozinha e pegou uma taça e uma garrafa de vinho. Sentou-se ao sofá e derramou sorrateiramente o liquido púrpura nas encostas do copo de espessura fina e fria. Encostou sobre os lábios e pôs-se a sorver o líquido como quem absorve a própria vida. O silêncio era suficiente, o barulho dos carros e a música orquestrada da cidade que termina o dia, tocavam uma harmonia que ela quase podia bailar. O silêncio da observação.

Insistentemente tomou o jornal do dia nas mãos. Limitou-se a ler seu horóscopo que insistia em demonstrar a previsibilidade da astrologia e a consulta inútil sobre seus próximos passos. Era o pedaço de uma história que ainda ninguém havia escrito.

Deitou-se. Cerrou os olhos e ainda assim era possível sentir a lágrima salgada e quente que contornava as curvas da face. Era o dia seguinte que ela esperava chegar. Esse dia que sempre espreita à nossa porta, mas que em chegando, nada mais é que esse mesmo dia em que se espera o que virá depois, dali às outras vinte e quatro horas.

De bruços na cama, sentiu o cheiro macio do lençol que acabara de chegar da lavanderia e que ela havia disposto sobre o colchão de maneira que não o amassasse. Adormeceu.

O sono tranqüilo foi interrompido por um toque que massageava carinhosamente sua testa, no curto espaço acima do nariz e entre os dois olhos. E, com dois olhos negros também se deparou assim que se dispersou da sonolência. Era ele.

Havia acabado de chegar e cumprir um trajeto que observava cuidadosamente os passos dados por aquela que ele conhecia tão bem. Quase podia imaginar seu rosto e a expressão lânguida que a tomou assim que entrou pela porta de sua casa. Deitou-se ao seu lado na cama, por ora, quente. Olhou-a longamente, até resolver acariciar-lhe a tez adormecida. O silêncio fora quebrado pelo jazz ronronando na vitrola antiga. Era possível ouvir as pequenas imperfeições que a agulha do aparelho causava nas ondulações do velho disco de vinil.

Assim ficaram durante longas horas. Olhando-se como se o mal-fadado passar do tempo não lhes tomasse de assalto. É esse o medo de quem não quer ir embora.
Abraçaram-se com cuidado. As palavras foram adiadas para o próximo encontro, que também assim, deveria ser, sem circunstância propícia ou planejada.

Despediu-se sem nada prometer. E ela assim o queria, sem juras curtas de um amor infindo. A surpresa agradava mais que o compromisso acompanhado de flores vermelhas. Foi-se assim.

Ela, tendo ficado, tomou mais um gole do vinho e dormiu sobre os cheiros confundidos, deixando o saxofone tripudiar sobre a dor que não a havia alcançado.

Um comentário:

Fernanda M. Vicentini disse...

Um sussurro literário!